Sentimentos Cotidianos

O que foi mata, mas o que ficou mata mais ainda

Eu gosto de deitar no peito do meu pai quando ninguém percebia o que eu mais precisava naquele momento. E pouco me importa, já que sei de tantas coisas dele.

Homenagem ao meu pai. Foto: Laila Guedes

Eu sei que ele acorda mais cedo e escova os dentes e, retorna a cama para acordar novamente com um hálito bom. Eu sei que prefere o lado esquerdo da cama, e que seu travesseiro tem que ser o de pena de ganso.

Eu sei que ele se faz de durão, mas o seu coração é o melhor do mundo e sei quantas pessoas ele ajuda sem ninguém saber disso. Eu sei que ele transpira muito, e por isso toma mais de dois banhos por dia.

Eu sei o que o olhar dele diz quando foca no preto dos meus olhos, sem dizer uma única palavra. E assim eu sei tudo que pensa de mim, e porque sempre deu mais presentes aos meus irmãos do que pra mim e, disso, só eu sei.

Eu sei que ele chorou muito quando sua mãe morreu e aquela dor foi tão forte que fez ele desabar. Eu sei que ele sentiu medo de morrer a primeira vez que seu coração parou de bater, que ele tem muito cabelo dentro do ouvido e corta sempre que cresce demais. Eu sei que depois do primeiro infarto ele começou a andar na orla, emagreceu, que parar de fumar é difícil, e que sua saúde tornou-se impecável depois disso. Ainda assim, sei o que foi mata, mas o que ficou mata mais ainda.

Eu sei que ele só senta na cabeceira da mesa, que comi tudo misturado, macarrão, arroz, farinha, frango, e o cozinho de domingo ele come na própria travessa. Eu sei que ele gosta de ir ao Pit Stop comer pastel de camarão e que, para ele, tudo fica melhor com pimenta.

Eu sei que ele tem a unha do pé tão dura que dá trabalho de cortar, e que não consegue cortar as unhas da mão direita, e por isso pedi ajuda. Que prefere mulher morena, mas casou com uma loira.

Eu sei que ele trabalha muitas madrugadas quando precisa, e detesta chegar atrasado nos compromissos. Que, se é de grau, ele prefere Ray Ban e, se é escuro, Vuarnet.

Eu sei que ele tem uma caixinha transparente com divisórias dos dias da semana para organizar todos os seus remédios, que aumentaram mais ainda depois que sua doença chegou.

Eu sei que ele dirige colado no carro da frente e que gosta de reclamar, implicar, xingar e seu temperamento forte e explosivo faz ele brigar por tudo, e na mesma hora se arrepende, e arruma uma maneira de se desculpar.

Eu sei que quando ele me dar carona, vai falando daqui até o destino, de como conduzir tudo de uma forma mais sábia. Também sei que toda vez que eu sair tenho que passar antes no quarto dele para fiscalizar a minha roupa, porque filha sua não sai de casa com roupa indecente. Que ele tem ciúme quando minha mãe vai trabalhar toda arrumada e perfumada.

Eu sei que o maior sonho dele é ter um filho homem. E ele torceu para que eu nascesse um menino, para ele poder chamá-lo do mesmo nome. Mas eu sei que, quando eu nasci, ele sorriu mesmo assim.

Eu sei que ele gosta de whisky com água de coco, ou só com gelo, tanto faz, ele gosta mesmo é de whisky. Que bebe cerveja também, quando está fazendo muito calor. Gosta da sua casa, de estar entre amigos, na gaiatice, paquerando até minhas amigas.

Sei que ele não se importa com roupas de marca cara, mas o perfume tem que ser o que ele gosta, independente de quanto custar. Eu sei que ele é apaixonado por carro, mas não hesitou em vender e ficar sem carro por um tempo, para poder comprar a nossa casa. Sei que ele trabalha numa empresa de engenharia, que nunca se formou, mas entende muito mais do que qualquer engenheiro formado.

Eu sei que ele já bateu o carro porque se distraiu olhando uma mulher gostosa desfilando na orla. Eu sei que é torcedor do Bahia doente, e eu torcedora do Vitória só pra contrariar, mas nunca deixou de me amar por conta disso. Eu sei que ele escuta música enquanto molha as plantas no jardim. E escova o pêlo dos cachorros com o maior cuidado.

Eu sei que ele gosta de deitar sem camisa, só de samba-canção e, que, dobra o braço direito e coloca atrás da nuca enquanto o esquerdo repousa sobre a barriga. Eu sei que ele, assim como eu, tem dificuldade em demonstrar o que senti. E só dizia eu te amo quando eu insistia muito. Mas eu sei que, mesmo em silêncio ele me ama muito mais. E eu ainda sei muito mais coisas dele, que se continuar escrevendo daria um livro, então irei dizer uma última coisa.

Sei que ele já faleceu, mas falo no presente porque ele é mais que presente, dentro de mim ele é vivo. Deve ser por isso que eu retorno sempre para o lado esquerdo da cama dele, deito e sinto a alma dando sinais explícito de amor verdadeiro. Retorno para a minha cama onde deito sempre do lado direito e deixo o esquerdo vazio.

* Pra ficar ainda melhor escute a canção “Penso em Ti”.